No mês de julho, a Câmara dos Deputados aprovou a mais profunda reforma do Sistema Tributário Nacional dos últimos tempos. Trata-se do resultado de décadas de estudos e debates, consubstanciada por uma emenda constitucional que atualizou a antiga PEC nº 45.
Por se tratar de emenda constitucional, o texto altera a norma de maior hierarquia no direito brasileiro, mas, ao mesmo tempo, carece de normatização ulterior, sobretudo por meio de lei complementar e demais leis. Ou seja, a completa efetividade da norma e seu detalhamento dependerá da atividade legislativa dos próximos anos.
Da mesma forma, a dinâmica legislativa de uma PEC atrai o chamado bicameralismo puro, por meio do qual o texto deve ser plenamente aprovado pelo Senado para ser promulgado. Com isso, abre-se larga margem para mudanças e novos debates, apesar de a reforma aprovada na Câmara servir como base para tanto.
A mudança legislativa reservará a maioria das alterações para incidirem de forma gradual, sobretudo a partir de 2026. No entanto, haverá questões de aplicação imediata, respeitada a anterioridade anual e a noventena.
Tendo em vista que esta reforma se digna a alterar praticamente toda a tributação sobre o consumo, cumpre a este artigo esmiuçar as principais novidades encartadas e como poderão afetar o quotidiano do brasileiro.
Principais mudanças
O Sistema Tributário passa a contar com novos princípios. Simplicidade, transparência, justiça e equilíbrio fiscal e defesa do meio ambiente passarão a compor o plexo axiológico do Direito Tributário, com expressa menção no texto constitucional. É possível que isso abra margem para questionamentos judiciais e permita decisões favoráveis ao contribuinte nos tribunais superiores.
A imunidade tributária destinada aos templos religiosos de qualquer culto, prevista no art. 150, VI, b, da Constituição, passará a abranger suas organizações assistenciais e beneficentes. Com isso, não será mais necessária a certificação das entidades paralelas às instituições religiosas como puramente beneficentes, bastando seu vínculo direto com o templo para que possam gozar de imunidade.
Haverá a extinção das contribuições ao PIS e à COFINS. Contudo, será criado o chamado “imposto seletivo”, incidente sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Apesar de já existir tal dinâmica na tributação atual, trata-se da materialização do princípio da seletividade, por meio do qual a tributação mais gravosa visa ao desincentivo do consumo de bens e serviços que afetam negativamente a vida em sociedade, tais como álcool, cigarro e alimentos ultra processados.
Tal lógica buscar reproduzir, no Brasil, o chamado “sin tax” (imposto sobre o pecado) estado-unidense, abrindo margem para tributação sobre jogos de azar. Este imposto não se submeterá à anterioridade anual e poderá ter sua alíquota alterada por normas do Poder Executivo.
O Imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD) também será alterado, mediante imposição da técnica de progressividade, ou seja, não será mais permitida alíquota única, como é o caso do Estado de São Paulo. Também passarão a ser imunes as doações realizadas a entidades sem fins lucrativos, de relevância pública, assistencial e religiosa.
O Imposto sobre propriedade de bens automotores (IPVA) passará a incidir sobre embarcações e aeronaves. Além disso, suas alíquotas poderão ser diversificadas em função do tipo, valor, utilização e impacto ambiental do automóvel. Tal ajuste contrapõe um posicionamento antigo do Supremo Tribunal Federal e responde aos anseios de décadas, mediante efetiva aplicação da justiça fiscal e taxação das camadas mais abastadas da sociedade. Tratores, máquinas agrícolas e embarcações de pesca serão imunes.
Será criado o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência dos estados e municípios. Haverá incidência sobre bens materiais, imateriais e direitos. Possivelmente haverá tributação sobre locação de bens móveis e imóveis, transferência de direitos e licença de imagem. Sem dúvida o consumidor verá um aumento em seus custos, cabendo à legislação ulterior definir o exato montante do impacto e sua abrangência. Cada estado contará com alíquota própria para todas as operações comuns, sendo cobrado o imposto no local do destino.
O novo imposto não incidirá sobre exportações, de modo a preservar um princípio clássico no Direito Tributário de neutralidade do capital de exportação e privilegiar a produção brasileira nos mercados internacionais. Também não haverá tributação em cascata.
Ao lado deste, será criada a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União e nos mesmos moldes do IBS. O início da cobrança de ambos se dará em 2026, com aumento progressivo e anual de suas alíquotas.
Fica criada a cesta básica nacional, formada por produtos que serão isentos em virtude de sua imprescindibilidade. Ao seu lado, haverá alíquota reduzida em 60% para uma série de produtos de primeira necessidade, tais como saúde, educação, transporte, alimentos e cultura.
Por fim, surge a possibilidade de instituição ulterior, pelos Estados e pelo DF, de contribuição destinada a financiar obras de infraestrutura. Esta recairá sobre produtos primários e semielaborados, constituindo a maior incógnita da reforma, pois apenas foi prevista sua possibilidade, sem qualquer definição normativa ou obrigatoriedade.
Importância da Lei Complementar e suas reservas
Um dos instrumentos mais relevantes no Sistema Tributário Nacional é a Lei Complementar. A Constituição é clara ao reservar a esta espécie normativa a competência para definir normas gerais de Direito Tributário, regular os conflitos de competência entre os entes federativos e definir as bases de cálculo e alíquotas dos impostos.
Com isso, apesar da edição da emenda constitucional, diversos temas apenas serão dotados de eficácia após a edição da Lei Complementar correspondente. Por este motivo, esta lei (ou leis) será tão importante quanto a reforma aprovada e deverá ser extensamente debatida.
Cumpre destacar alguns de seus pontos:
O conceito de essencialidade, para fins do imposto seletivo, bem como suas alíquotas. A criação do novo imposto visa a um evidente fim extrafiscal, porém será necessário delimitar legislativamente o que deverá ser considerado prejudicial à saúde e ao meio ambiente e em que grau, de modo a justificar a tributação e o gravame maior ou menor. Muito provavelmente esta lógica espelhará o que existe hoje para o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que deixará de existir.
A definição de impacto ambiental, utilização e tipo de automóvel, para fins de progressividade do IPVA, deverá ser estipulada em lei complementar, de modo a contemplar a técnica e o critério que deverá ser adotado por cada estado. Será necessário definir as balizas e evitar incongruências que possam surgir, como a alíquota de um automóvel que seja caro e amigável ao meio ambiente ao mesmo tempo, ou seja, que cumpra os requisitos para uma tributação mais e menos gravosa de forma concomitante. Da mesma forma, a definição de maquinário agrícola e das embarcações utilizadas para pesca deverão ser melhor detalhadas, mediante especificações técnicas e mercadológicas.
A criação do IBS será feita por meio de lei complementar, que deverá detalhar sua regra-matriz de incidência, hipóteses de isenção, alíquota e base de cálculo. Praticamente tudo que representa o novo imposto será normatizado em um segundo momento, sendo claro que a reforma apenas definiu as bases lógicas e os princípios para sua criação.
O novo imposto será não cumulativo, ou seja, será possível pagá-lo por meio de crédito obtido nas operações anteriores em sua cadeia de produção. Contudo, a reforma não trouxe os exatos termos desta dinâmica, sendo necessário à Lei Complementar definir quais operações darão direito ao creditamento e se haverá possibilidade de crédito sobre serviços de prestadores optantes pelo Simples Nacional.
Nos mesmos moldes acima, a CBS também será criada por lei complementar. Haverá ainda a possibilidade de cashback, com devolução da contribuição a pessoas físicas de baixa renda.
A definição e o alcance dos produtos que comporão a cesta básica serão feitos por Lei Complementar, sendo certo que deverá ter abrangência nacional. Também deverão ser definidos os produtos e serviços com alíquota reduzida.
Conclusão
Por todas as considerações, verifica-se a complexidade, a incompletude e o impacto que a reforma tributária refletirá na vida de todos os brasileiros. O setor de serviços, que representa cerca de 70% do PIB nacional, sofrerá as maiores mudanças e passará por uma verdadeira reorganização de índole operacional e contábil nos próximos anos.
A falta da Lei Complementar, e de legislação ulterior, cria uma grande incerteza em saber de que forma serão aplicados os princípios e as regras trazidas pela reforma. Além disso, existe possibilidade de mudanças ao texto no Senado Federal.
Certo é que a tão anunciada simplificação não será tão sensível como divulgado; tampouco se poderá cogitar qualquer redução no pagamento de tributos. A partir de 2024 já poderemos ver mudanças, como a nova incidência do IPVA, a criação do imposto seletivo e a progressividade do ITCMD, sendo certo que a tributação sobre o consumo terá suas modificações introduzidas a partir de 2026, apenas. O próximo passo será a reforma da tributação sobre a renda, sobretudo com a incidência de imposto sobre lucros e dividendos.
A complexidade do Sistema Tributário Nacional e da legislação brasileira exige um constante assessoramento jurídico ao setor produtivo, de modo a garantir sua adaptação às novidades e a preservar seus interesses dentro da moldura normativa posta.

